Hoje sonhei contigo. Sorrias, mas no pensamento vagueiam ainda fantasmas, uns doces, outros menos doces. Se soubesse o que querer, se soubesse o que poder dar, talvez não me sentisse tão perdida nesta infinidade de ilusões sombrias.
É verdade que as ilusões nem sempre têm luz e também é verdade que nem sempre a luz conduz à claridade. O silêncio nem sempre traz fantasmas e viver às vezes custa. Apanhar as pedras do caminho e atirá-las ao rio, tentar que batam na água três vezes... Nunca consegui. O meu pai sim, seixos lisos e leves, dizia ele, e lá ia a pedrita a saltar por cima da água como num passe de mágica, até que por fim desaparecia no reflexo da luz.
Eu nunca fui muito hábil, sou mais dada a tropeções e a quedas. O desequilíbrio faz parte da minha natureza, dá-me vários pontos de vista, ou pontos de fuga. Quando caio vejo sempre o céu mais azul, e quando me levanto vejo sempre as pedras bastante mais pequenas. O verde entranha-se, e a terra ganha o sabor do mar.
Não me apetece começar o ano, não gosto de passas, e do bolo-rei só como a massa. O meu pai diz que ainda não aprendi a comer bolo-rei, e fica muito triste com os meus desperdícios. Com o tempo aprendi a fechar os olhos a uma ou outra fruta seca, mas o truque é mesmo partir as fatias bem finas. A minha mãe não se mete nessas questões, pede-me apenas que seja comedida. A gulodice não faz bem a ninguém, e o chocolate em demasia faz dores de barriga. O problema da minha mãe é mesmo o facto de eu roer as unhas. Fica muito triste e diz-me que eu não tenho força de vontade. Na realidade eu não tenho é vontade, e sem vontade a força perde-se.
Estou a ficar cegueta. Tenho medo dos meu sonhos, vejo-os sempre muito ao longe. É como quando espero pelo autocarro, as senhoras pequeninas e corcundas são as primeiras a ver o número. Elas não sabem, mas para mim é como um jogo, ganha sempre quem vê primeiro. Só que eu nunca vejo primeiro, e por isso perco sempre.
Já telefonei à minha mãe, a queixar-me. Disse-lhe que estava cegueta, que era a última a ver os números. Expliquei-lhe que fazia batotice, que só conseguia focar a imagem através da voz das senhoras pequeninas e corcundas. A minha mãe com toda a sua paciência de mãe, disse-me que era da poluição, e desde então melhorei bastante, mas para minha infelicidade continuo cegueta.
A minha mãe sabe muitas coisas, às vezes não usa é as palavras certas. Como é possível acertar quando se erra nas palavras? Talvez seja a linguagem do olhar, ou a do respirar; um código distinto entre mães e filhas, o código da voz, o dos pequenos sinais somados. Deveria haver um teorema para provar esta soma. “Ao chegar a Siracusa, Pitágoras disse a seus netos: o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos.”
Hoje sonhei contigo. E um carro boiava no rio. As imagens confundem-se… E depois há o medo, os passarinhos, e as cores de um novo ano. Feliz 2008!
É verdade que as ilusões nem sempre têm luz e também é verdade que nem sempre a luz conduz à claridade. O silêncio nem sempre traz fantasmas e viver às vezes custa. Apanhar as pedras do caminho e atirá-las ao rio, tentar que batam na água três vezes... Nunca consegui. O meu pai sim, seixos lisos e leves, dizia ele, e lá ia a pedrita a saltar por cima da água como num passe de mágica, até que por fim desaparecia no reflexo da luz.
Eu nunca fui muito hábil, sou mais dada a tropeções e a quedas. O desequilíbrio faz parte da minha natureza, dá-me vários pontos de vista, ou pontos de fuga. Quando caio vejo sempre o céu mais azul, e quando me levanto vejo sempre as pedras bastante mais pequenas. O verde entranha-se, e a terra ganha o sabor do mar.
Não me apetece começar o ano, não gosto de passas, e do bolo-rei só como a massa. O meu pai diz que ainda não aprendi a comer bolo-rei, e fica muito triste com os meus desperdícios. Com o tempo aprendi a fechar os olhos a uma ou outra fruta seca, mas o truque é mesmo partir as fatias bem finas. A minha mãe não se mete nessas questões, pede-me apenas que seja comedida. A gulodice não faz bem a ninguém, e o chocolate em demasia faz dores de barriga. O problema da minha mãe é mesmo o facto de eu roer as unhas. Fica muito triste e diz-me que eu não tenho força de vontade. Na realidade eu não tenho é vontade, e sem vontade a força perde-se.
Estou a ficar cegueta. Tenho medo dos meu sonhos, vejo-os sempre muito ao longe. É como quando espero pelo autocarro, as senhoras pequeninas e corcundas são as primeiras a ver o número. Elas não sabem, mas para mim é como um jogo, ganha sempre quem vê primeiro. Só que eu nunca vejo primeiro, e por isso perco sempre.
Já telefonei à minha mãe, a queixar-me. Disse-lhe que estava cegueta, que era a última a ver os números. Expliquei-lhe que fazia batotice, que só conseguia focar a imagem através da voz das senhoras pequeninas e corcundas. A minha mãe com toda a sua paciência de mãe, disse-me que era da poluição, e desde então melhorei bastante, mas para minha infelicidade continuo cegueta.
A minha mãe sabe muitas coisas, às vezes não usa é as palavras certas. Como é possível acertar quando se erra nas palavras? Talvez seja a linguagem do olhar, ou a do respirar; um código distinto entre mães e filhas, o código da voz, o dos pequenos sinais somados. Deveria haver um teorema para provar esta soma. “Ao chegar a Siracusa, Pitágoras disse a seus netos: o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos.”
Hoje sonhei contigo. E um carro boiava no rio. As imagens confundem-se… E depois há o medo, os passarinhos, e as cores de um novo ano. Feliz 2008!
Imagem de Jennifer Davis. Migration. 2007